Uma
projeção da ONG Conservação Internacional, que se tornou unânime entre
pesquisadores do assunto, aponta que o Cerrado brasileiro pode desaparecer até
o ano de 2030, salvo menos de 3% da região que é área de preservação. Todo dia,
cerca de mil caminhões cheios de carvão feito do Cerrado saem do centro do
Brasil para indústrias em todo o país. Um sem número deles circula pelas
rodovias, carregados do que sobrou de árvores como o Jatobá, a Sucupira e a
Aroeira, preferidas tanto pelas madeireiras quanto pelos fornos ilegais. Há
indústrias que só compram carvão de Ipê. Perfeitas pela espessura, dureza e
formato, as árvores do Cerrado custam pouco para as indústrias, que não pagam
por elas. Uma área se esgota, outra é aberta sucessivamente.
O carvão também é econômico porque contém sílica, que queima mais devagar, e a
mão-de-obra é quase escrava. As condições de trabalho nas atividades carvoeiras
são classificadas como "semi-escravas", "penosas",
"precárias" e "brutais". Peso excessivo, queimaduras,
doenças pulmonares crônicas. Fuligem e calor de até 70 graus. A lenha do
Cerrado ainda é uma matriz energética no semi-árido. Famílias inteiras de
carvoeiros pulverizadas pelo país. Avós, pais, filhos carvoeiros. Nessas
regiões de fornos espalhadas por onde sobrou de Cerrado brasileiro, não se
conhece outro jeito de viver. Ali a exploração do trabalho infantil é
planejamento de vida. O ofício é passado de pai para filho. A sina do carvão no
Brasil é herança, percebe? Quase uma instituição. No Cerrado brasileiro é a vida
que se esgota a cada dia, por todos os lados.
Não há planos para a exploração
sustentável do Cerrado brasileiro. Só avanço indiscriminado. Diferente da
Amazônia, Mata Atlântica e Pantanal, o
Cerrado estranhamente não recebeu da Constituição Federal o status de
“Patrimônio Nacional”, assim como a Caatinga. A preservação dos sertões não
faz parte da nossa cultura. Proteger o Cerrado não deve estar mesmo nos planos
do governo. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) tenta corrigir o erro
de 1988, mas a matéria está perdida há oito anos, tramitando na Câmara dos
Deputados sem previsão de ser apreciada. Para este ano não dá mais. Nem para o
próximo. É um lobby da pesada.
A cultura agropecuária sempre ensinou que
o Cerrado é terra disponível, que não vale nada. E em algum momento da história
isso se tornou verdade: virgem, o Cerrado vale seis vezes menos do que em campo
limpo. É seis vezes mais negócio comprar o Cerrado em pé e depois derrubá-lo.
Afinal, é lá que pasta a carne e o deita o grão do Brasil. Só para a soja, o
Cerrado perde o equivalente à cidade de São Paulo por mês. Juntos, os
pecuaristas e os produtores respondem pelo desaparecimento de 80% do território
original do Cerrado. E seguem a toda velocidade rumo ao esgotamento do bioma
contemporâneo da megafauna. O que resta são áreas preservadas — 2,2%, e
cercadas em pequenas e médias propriedades, que impedem o trânsito dos animais
e a dinâmica do Cerrado.
As poucas 195 espécies de mamíferos
conhecidos ficam isoladas, como o Muro de Berlim. Não há reprodução. Quase
todas estão em extinção. Por isso é tão difícil salvar as espécies conhecidas:
até hoje, foram registradas apenas 10.000 variedades de plantas, 800 de aves e
os mamíferos de médio e grande porte do Cerrado. E não é apenas fauna e flora
que estão ameaçadas. Em três ordens de insetos, lepidoptera (borboletas,
mariposas etc.), hymenoptera (abelhas, vespas etc.) e isoptera (formigas,
cupins etc.), o número de espécies estimado é de 14.425, o que representa 47%
da entomofauna do Brasil. Além disso, o grau de endemismo no Cerrado é
significativo, mais de 40% das espécies lenhosas e metade das espécies de
abelhas de todo o mundo só existem no Cerrado.
Não há uma profusão de dados, salvo algumas dimensões geográficas e contagem
das espécies conhecidas. E isso é muito pouco. São vários tipos de Cerrado num
só bioma. Quatro paisagens diferentes. Cada um com um ecossistema. A maioria das informações sobre a fauna e
a flora se restringem a estudos realizados no Distrito Federal e na Serra
do Cipó, Minas Gerais. O pouco que se sabe é fruto do empenho isolado de
pesquisadores e don quixotes, gente séria e dedicada. Gente que cataloga sem
parar dados de toda origem sem receber nada por isso. Até uma molécula, ainda
nova para a ciência, foi isolada por uma professora da Universidade de
Brasília.
Sabe-se, por exemplo, que do Cerrado podem sair bons remédios. Estudos de
botânica na UnB revelaram que difícil é alguma espécie vegetal não ter valor
medicinal. Mais fácil seria separar as que não têm propriedade nenhuma. Se não
cura, é alimento. Quem conhece, não passa fome neste tipo de sertão. A
sabedoria popular da farmácia do Cerrado, ainda misteriosa, é riquíssima. O
extrato herbáceo pequeno, aquele matinho baixo e ressecado que é o primeiro a
ser derrubado, cura até câncer. Há registros de cura de doenças graves a partir
do princípio ativo das raízes, flores, folhas, seivas e venenos do Cerrado. Uma
empresa suíça patenteou o princípio ativo do veneno da jararaca, que é a última
palavra para o controle e cura da hipertensão.
Só um grama in natura vale, no mercado internacional, 450 dólares. As
indústrias estão de olho no potencial cosmético e medicinal da vegetação do
Cerrado. Todas as espécies — as que
conhecemos e as de que ainda não temos notícia — são roubadas do habitat do
Cerrado sem cerimônia. Os traficantes não poupam esforços para satisfazer um
mercado movido principalmente por donos de passarinhos e colecionadores de
animais exóticos. A ONG Renctas encontrou uma espécie de macaco do Cerrado, ainda
vivo, com os braços e pernas fraturados, dentro de uma garrafa térmica, em um
ônibus perto de Brasília. Fotos de fiscais mostram um tamanduá sem as patas da
frente. Perdeu tentando sair de um pequeno toco fechado com pregos. E ali, nas
viagens por terra, ficam dias e dias, até o destino final. Para cada animal
silvestre comprado em uma feira, dez precisam morrer no trajeto. Se não chegam
vivos, valem um souvenir. Animais empalhados, insetos em acrílico de chaveiro
ou câmbio de caminhão e borboletas raras num prato cafona. As peles de felinos,
como a onça ou a suçuarana, são vendidas em paradas ou postos de gasolina por
todo o país. As estradas também estão cheias de traficantes oferecendo animais
amarrados, ensacados, filhotes ou não, que não comem desde que foram capturados
no Cerrado.
E para quem sente tanta aridez, não pode imaginar a quantidade de água que essa
região produz. Cachoeiras, Águas Emendadas. Manancial. O Cerrado tem quase 2
milhões de km2, de um Brasil de oito e meio, e que em corte, é como uma
pirâmide decepada. No topo, está a água. É dele que depende o abastecimento do
país, na sua origem. As nascentes do Cerrado, incansáveis, produzem uma
quantidade de água que mantém as três bacias mais importantes, logo abaixo.
Grande parte da capacidade das bacias do Prata, do São Francisco e da própria
Amazônia conta com a água que desce do Cerrado para manter os níveis normais.
Ocupações, represas e assoreamento. Avanço.